Por JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Teologia pentecostal se afasta da tradição judaico-cristã ao atribuir ao mal uma potência independente de Deus e dos homens
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Colunista da Folha
Estava passeando pela TV quando dei com um culto da Igreja Mundial do Poder de Deus. Teria rapidamente mudado de canal se não tivesse acabado de ler o interessante livro de Ronaldo de Almeida, "A Igreja Universal e seus Demônios – Um Estudo Etnográfico" [ed. Terceiro Nome, 152 págs., R$ 28], que me abriu os olhos para o lado especificamente religioso dos movimentos pentecostais. Até então, via neles sobretudo superstição, ignorando o sentido transcendente dessas práticas religiosas.
No culto da TV, o pastor simplesmente anunciou que, dado o aumento das despesas da igreja, no próximo mês, o dízimo subia de 10% para 20%. Em seguida, começou a interpelar os crentes para ver quem iria doar R$ 1.000, R$ 500 e assim foi descendo até chegar a R$ 1.
Notável é que o dízimo não era pensado como doação, mas simplesmente como devolução: já que Deus neste mês dera-lhe tanto, cabia ao fiel devolver uma parte para que a igreja continuasse no seu trabalho mediador. Em suma, doar era uma questão de justiça entre o fiel e Deus.
Em vez de o salário ser considerado como retribuição ao trabalho, o é tão só como dádiva divina, troca fora do mercado, como se operasse numa sociedade sem classes. Isso marca uma diferença com os antigos movimentos protestantes, em particular o calvinismo, para os quais o trabalho é dever e a riqueza, manifestação benfazeja do bom cumprimento da norma moral.
Se o salário é dádiva, precisa ser recompensado. Não segundo a máxima franciscana "é dando que se recebe", pois não se processa como ato de amor pelo outro. No fundo vale o princípio: "Recebes porque doastes". E como esse investimento nem sempre dá bons resultados, parece-me natural que o crente mude de igreja, como nós procuramos um banco mais rentável para nossos investimentos.
O crente doa apostando na fidelidade de Deus. Os dísticos gravados nos carros, "Deus é fiel", não o confirmam? Mas Dele espera-se reciprocidade, graças à mediação da igreja, cada vez mais eficaz conforme se torna mais rica. Deus é pensado à imagem e semelhança da igreja, cujo capital lança uma ponte entre Ele e o fiador.
ANTICALVINISMO
Além de negar a tradicional concepção calvinista e protestante do trabalho, esse novo crente não mantém com a igreja e seus pares uma relação amorosa, não faz do amor o peso de sua existência.
Sua adesão não implica conversão, total transformação do sentido de seu ser; apenas assina um contrato integral que lhe traz paz de espírito e confiança no futuro. Em vez da conversão, mera negociação. Essa religião não parece se coadunar, então, com as necessidades de uma massa trabalhadora, cujos empregos são aleatórios e precários?
Outro momento importante do livro é a crítica da Igreja Universal ao candomblé, tomado como fonte do mal. Essa crítica não possui apenas dimensões política e econômica, assume função religiosa, pois dá sentido ao pecado praticado pelo crente. O pecado nasce porque o fiel se afasta de Deus e, aproximando-se de uma divindade afro-brasileira, foge do circuito da dádiva. Configura fraqueza pessoal, infidelidade a Deus e à igreja.
Nada mais tem a ver com a ideia judaico-cristã do pecado original. Não se resolve naquela mácula, naquela ofensa, que somente poderia ser lavada pela graça de Deus e pela morte de Jesus, mas sempre requerendo a anuência do pecador.
Se resulta de uma fraqueza, desaparece quando o crente se fortalece, graças ao trabalho de purificação exercido pelo sacerdote. O fiel fraquejou na sua fidelidade, cedeu ao Diabo cheio de artimanhas e precisa de um mediador que, em nome de Deus, combata o Demônio. O exorcismo é descarrego, batalha entre duas potências que termina com a vitória do bem e a purificação do fiel.
PAGANISMO
Compreende-se, então, a função social do combate ao candomblé: traduz um antigo ritual cristão numa linguagem pagã. Os pastores dão pouca importância ao conhecimento das Escrituras, servem-se delas como relicário de exemplos. Importa-lhes mostrar que o Diabo, embora tenha sido criado por Deus, depois de sua queda se levanta como potência contra Deus e, para cumprir essa missão, trata de fazer o mal aos seres humanos.
O mal nasce do mal, ao contrário do ensinamento judeu-cristão que o localiza nas fissuras do livre-arbítrio. Adão e Eva são expulsos do Paraíso porque comeram o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e assim se tornam pecadores, porque agora são capazes de discriminar os termos dessa bipolaridade moral.
Essa teologia pentecostal se aproxima, então, do maniqueísmo. Como sabemos, o sacerdote persa Mani (também conhecido por Maniqueu), ativo no século 3º, pregava a existência de duas divindades igualmente poderosas, a benigna e a maligna. Isso porque o mal somente poderia ter origem no mal. A nova teologia pentecostal empresta o mesmo valor aos dois princípios e, assim, ressuscita a heresia maniqueísta, misturando o cristianismo com a teologia pagã.
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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Teologia pentecostal se afasta da tradição judaico-cristã ao atribuir ao mal uma potência independente de Deus e dos homens
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Colunista da Folha
Estava passeando pela TV quando dei com um culto da Igreja Mundial do Poder de Deus. Teria rapidamente mudado de canal se não tivesse acabado de ler o interessante livro de Ronaldo de Almeida, "A Igreja Universal e seus Demônios – Um Estudo Etnográfico" [ed. Terceiro Nome, 152 págs., R$ 28], que me abriu os olhos para o lado especificamente religioso dos movimentos pentecostais. Até então, via neles sobretudo superstição, ignorando o sentido transcendente dessas práticas religiosas.
No culto da TV, o pastor simplesmente anunciou que, dado o aumento das despesas da igreja, no próximo mês, o dízimo subia de 10% para 20%. Em seguida, começou a interpelar os crentes para ver quem iria doar R$ 1.000, R$ 500 e assim foi descendo até chegar a R$ 1.
Notável é que o dízimo não era pensado como doação, mas simplesmente como devolução: já que Deus neste mês dera-lhe tanto, cabia ao fiel devolver uma parte para que a igreja continuasse no seu trabalho mediador. Em suma, doar era uma questão de justiça entre o fiel e Deus.
Em vez de o salário ser considerado como retribuição ao trabalho, o é tão só como dádiva divina, troca fora do mercado, como se operasse numa sociedade sem classes. Isso marca uma diferença com os antigos movimentos protestantes, em particular o calvinismo, para os quais o trabalho é dever e a riqueza, manifestação benfazeja do bom cumprimento da norma moral.
Se o salário é dádiva, precisa ser recompensado. Não segundo a máxima franciscana "é dando que se recebe", pois não se processa como ato de amor pelo outro. No fundo vale o princípio: "Recebes porque doastes". E como esse investimento nem sempre dá bons resultados, parece-me natural que o crente mude de igreja, como nós procuramos um banco mais rentável para nossos investimentos.
O crente doa apostando na fidelidade de Deus. Os dísticos gravados nos carros, "Deus é fiel", não o confirmam? Mas Dele espera-se reciprocidade, graças à mediação da igreja, cada vez mais eficaz conforme se torna mais rica. Deus é pensado à imagem e semelhança da igreja, cujo capital lança uma ponte entre Ele e o fiador.
ANTICALVINISMO
Além de negar a tradicional concepção calvinista e protestante do trabalho, esse novo crente não mantém com a igreja e seus pares uma relação amorosa, não faz do amor o peso de sua existência.
Sua adesão não implica conversão, total transformação do sentido de seu ser; apenas assina um contrato integral que lhe traz paz de espírito e confiança no futuro. Em vez da conversão, mera negociação. Essa religião não parece se coadunar, então, com as necessidades de uma massa trabalhadora, cujos empregos são aleatórios e precários?
Outro momento importante do livro é a crítica da Igreja Universal ao candomblé, tomado como fonte do mal. Essa crítica não possui apenas dimensões política e econômica, assume função religiosa, pois dá sentido ao pecado praticado pelo crente. O pecado nasce porque o fiel se afasta de Deus e, aproximando-se de uma divindade afro-brasileira, foge do circuito da dádiva. Configura fraqueza pessoal, infidelidade a Deus e à igreja.
Nada mais tem a ver com a ideia judaico-cristã do pecado original. Não se resolve naquela mácula, naquela ofensa, que somente poderia ser lavada pela graça de Deus e pela morte de Jesus, mas sempre requerendo a anuência do pecador.
Se resulta de uma fraqueza, desaparece quando o crente se fortalece, graças ao trabalho de purificação exercido pelo sacerdote. O fiel fraquejou na sua fidelidade, cedeu ao Diabo cheio de artimanhas e precisa de um mediador que, em nome de Deus, combata o Demônio. O exorcismo é descarrego, batalha entre duas potências que termina com a vitória do bem e a purificação do fiel.
PAGANISMO
Compreende-se, então, a função social do combate ao candomblé: traduz um antigo ritual cristão numa linguagem pagã. Os pastores dão pouca importância ao conhecimento das Escrituras, servem-se delas como relicário de exemplos. Importa-lhes mostrar que o Diabo, embora tenha sido criado por Deus, depois de sua queda se levanta como potência contra Deus e, para cumprir essa missão, trata de fazer o mal aos seres humanos.
O mal nasce do mal, ao contrário do ensinamento judeu-cristão que o localiza nas fissuras do livre-arbítrio. Adão e Eva são expulsos do Paraíso porque comeram o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e assim se tornam pecadores, porque agora são capazes de discriminar os termos dessa bipolaridade moral.
Essa teologia pentecostal se aproxima, então, do maniqueísmo. Como sabemos, o sacerdote persa Mani (também conhecido por Maniqueu), ativo no século 3º, pregava a existência de duas divindades igualmente poderosas, a benigna e a maligna. Isso porque o mal somente poderia ter origem no mal. A nova teologia pentecostal empresta o mesmo valor aos dois princípios e, assim, ressuscita a heresia maniqueísta, misturando o cristianismo com a teologia pagã.
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JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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